Aviso de conteúdo: Exemplos contém retórica cissexista e discriminação contra certas identidades cisdissidentes específicas, pessoas que quebram normas de gênero e pessoas cujas identidades cis/heterodissidentes são afetadas por questões externas.
Links para termos e conceitos relativamente incomuns são providenciados. Porém, para quem procura algum texto mais básico sobre cisdissidência, sugiro ler Vocabulário usado em círculos NHINCQ+ inclusivos, FAQ Trans e/ou a seção Perguntas Frequentes no site Múltiplas Identidades.
A binaridade
O exemplo de jornada trans mais normalizado num mundo cissexista é o seguinte: uma pessoa é vista como “nascida no corpo errado”, mostrando desde seus primeiros momentos de vida preferências típicas de crianças que foram impostas o outro gênero binário, desde roupas a brinquedos e grupos sociais. Durante e após a puberdade, a pessoa começa a ter sua saúde mental prejudicada por seu corpo estar mudando para o “oposto” do que ela queria, em questão de voz, altura, curvas, peito e afins. Então, quando a pessoa tem poder de decisão (ou como adulta, ou como adolescente com responsáveis aliades), ela vai atrás de hormônios (ou bloqueadores de puberdade, em caso de menores de 16) e cirurgias para finalmente ter “o corpo certo” que externaliza o que a pessoa sempre considerou uma certeza para si mesma.
Obviamente, o “modelo” acima não se aplica a quaisquer pessoas que não se encaixam nos gêneros que lhes foram impostos ao nascer. É uma história que foi e é muito usada em consultórios que querem restringir modificações corporais que afirmam identidades cisdissidentes, mas nem toda pessoa trans passou por disforia corporal, vai atrás de parecer cis, sempre soube qual era a sua verdadeira identidade de gênero, tem preferências por roupas/hobbies/etc. compatíveis com estereótipos associados com seus gêneros ou assim por diante.
Uma vantagem das pessoas binárias — isto é, das pessoas que se identificam somente, completamente e sempre como homens ou como mulheres, independentemente de suas modalidades de gênero, sendo quaisquer ataques contra suas identidades de gênero uma questão de não se encaixarem em padrões opressivos e não a das identidades de gênero em si serem tratadas como enganos, inexistentes ou indignas de consideração — é que, em uma sociedade exorsexista, já é normalizada a ideia de que existem mulheres e de que existem homens. Existem arquétipos com os quais cada pessoa pode se identificar por todo lado: personagens, colegas, pessoas na família, personalidades sobre quem saem notícias.
Isso não significa, necessariamente, que é fácil para homens e mulheres trans ou últer descobrirem suas próprias identidades de gênero. Como falei, aquela história lá do início é só um estereótipo. Várias pessoas passam por períodos de rejeição da própria identidade de gênero por conta de não querer ser cisdissidentes, não querer ser associadas com os piores aspectos atrelados aos seus gêneros ou não conseguir se ver como suficientemente atreladas aos arquétipos de mulher ou homem.
Porém, por bem ou por mal e independentemente de representações limitadas, os referenciais “mulher” e “homem” estão por aí, e, para muitas pessoas, essas são as únicas identidades de gênero com as quais têm contato. Mesmo quem conhece pessoas fora dessa binaridade podem não ter referências suficientes de alguma outra identidade de gênero específica para internalizar algum outro arquétipo relacionado com identidade de gênero.
É relevante ressaltar que o termo não-binárie é uma tradução do termo nonbinary, o qual foi cunhado por volta de 2010. Também nunca achei discussões na língua portuguesa sobre termos como neutrois e bigênero, termos mais antigos, em contextos anteriores à introdução do conceito de não-binaridade. Existem termos que podem ser usados para denotar não-binaridade que já estavam em uso, como bicha, sapatão e travesti, mas estes termos nem sempre indicam uma vivência fora do binário mulher/homem, e muitas vezes não são interpretados como tal, especialmente por pessoas de fora dessas comunidades. Ou seja, o período de tempo que muitas pessoas tiveram para se acostumar com a ideia se pessoas que não reinvindicam nem só a mulheridade e nem só a hombridade também é menor, em comparação com o quanto de informações são reproduzidas e internalizadas acerca dos gêneros mulher e homem.
O processo de questionamento não-binário
Como alguém pode se entender como não-binárie, então, presumindo apenas esses referenciais binários?
O primeiro sinal é a falta de identificação tanto apenas com a ideia de ser 100% mulher quanto com a ideia de ser 100% homem. A reflexão sobre não ser simplesmente uma questão de normas de gênero ou estereótipos, e sim de não achar que faz sentido se reinvindicar como mulher ou homem de qualquer tipo, ou de se ver tanto quanto mulher quanto como homem, ou de se ver mais ou menos como mulher e/ou homem mas de forma que não é completamente correspondente com a binaridade.
O problema é o que vem depois disso.
Existem pessoas para as quais só se ver como não-binárias é suficiente, mas esta não é uma experiência universal. Existem pessoas que querem ao menos ter alguma certeza mais profunda do que isso antes de reinvindicar o termo, assim como pessoas que querem se definir de formas precisas. Mas, novamente, dificilmente pessoas não-binárias se encontram em contextos sociais onde possuem referenciais sólidos para além disso.
Por exemplo, é possível considerar os termos femigênero, nonera e dulcigênero: o primeiro descreve um gênero não-binário feminino, o segundo descreve um gênero não-binário feminino que definitivamente não tem a ver com ser mulher e o terceiro descreve um gênero relacionado a estereótipos femininos. Além disso, muitas pessoas não refletem acerca da possibilidade de uma sensação de gênero feminina ser diferente da sensação de um gênero relacionado a ser mulher, a qual adicionaria possibilidades como juxera, demimulher e mulher não-binárie.
Por mais que hajam pessoas que se colocariam em vários destes termos, também existem pessoas que preferem usar menos termos, ou que querem identificar a própria identidade com maior precisão. Como é que estas pessoas poderiam identificar as próprias experiências de gênero com mais precisão?
Há pessoas que vão, desde o início de suas jornadas, ser capazes de diferenciar tais termos com precisão. Há outras que vão preferir um termo mais vago antes de ter certeza. Mas há muitas outras que vão precisar passar por um processo de experimentação, onde a reinvindicação de determinados termos ajudará a decidir se tais termos são precisos para se descrever ou não.
No exemplo dado, uma pessoa com um gênero feminino pode primeiro se ver como demimulher (um termo mais comum de ser encontrado entre os outros citados), perceber que não está confortável com colocar seu gênero como “parcialmente mulher”, passar a se dizer juxera, perceber que juxeras não experienciam necessariamente feminilidade e sim adjacência ao gênero mulher, passar a se definir como nonera, eventualmente ficar desconfortável com a ideia de seu gênero ser feminino e então pesquisar mais, eventualmente chegando na conclusão sobre ser xenogênero e sentir mais conexão com ideias relacionadas com feminilidade do que com termos como feminine ou mulher, passando então a se ver como estetigênero e, mais especificamente, dulcigênero.
Uma jornada assim não indica, necessariamente, uma mudança na identidade de gênero da pessoa, e nem uma falta de conhecimento sobre onde achar outros termos que poderiam contemplar melhor sua experiência. A questão é que, para alguém que só viveu entre pessoas que só eram homens ou que só erem mulheres, pode ser difícil avaliar a “distância” entre a própria experiência não-binária e tais gêneros sem tentar se identificar ativamente com uma variedade de termos.
Narrativas exorsexistas a respeito do questionamento
Infelizmente, ainda vivemos num mundo onde muitas identidades marginalizadas só são validadas a partir de certas pessoas “nascerem assim”. Esta justificativa ainda é muito usada mesmo em espaços cis/heterodissidentes, muitas vezes ignorando as questões sociais (e impostas pelo colonialismo) que cercam gênero para poder justificar que simplesmente nasceram com atração por certo(s) gênero(s) ou sem atração por ninguém, e/ou que nasceram com certa identidade de gênero. Tal retórica é tão comum e insidiosa que pessoas que a defendem tendem até a atacar identidades dependentes de circunstâncias não congênitas (como trauma ou neurodivergências derivadas de trauma) como se essas fossem ataques às suas “identidades legítimas”, colocando as experiências alheias como inválidas por suposições de que são “curáveis” ou temporárias mesmo que não sejam e mesmo que forem ainda seriam experiências reais nas vidas de tais pessoas.
Obviamente, tal mentalidade é tóxica independente das circunstâncias. Porém, quando se trata de pessoas não-binárias, há o problema mencionado da falta de referenciais dificultando o autoentendimento de cada ume.
Já presenciei várias pessoas culpando listas extensivas de identidades de gênero por suas próprias inabilidades de definir que termos se aplicam melhor a si. Tais pessoas passam meses ou anos se vendo como poligênero ou gênero-fluido e indo atrás de identificar seus vários gêneros, ou adotando alguma identidade não-binária mais específica como um neurogênero ou xenogênero, só para depois concluírem que estão erradas, que “esses gêneros nem existem”, e passarem a se ver como mulheres, homens, pessoas agênero, demi-homens, demi-mulheres ou outra identidade mais reconhecida e aceita em uma variedade maior de espaços.
É possível que essas pessoas tenham desistido de chegar a conclusões mais precisas sobre suas próprias identidades de gênero por perceberem que não há necessariamente muitos benefícios em comunicar a própria identidade de gênero de forma precisa. É possível que tais pessoas tenham sido alvos de discursos de ódio tão pesados que preferiram se dobrar, ao menos em parte, a expectativas mais restritas acerca de suas identidades de gênero. É possível que essas pessoas não tenham entendido bem o que significa ter um gênero e estavam adotando termos para identidades de gênero por conta de outros gostos ou interesses.
É possível que alguém se encaixe em mais de uma das possibilidades citadas e/ou no ponto principal deste texto, que se trata de ter que passar por experimentações mais práticas acerca de uma identidade de gênero até descobrir algo que contempla alguém melhor. A questão é que a culpa não deveria ser colocada na variedade de possibilidades dispostas, e sim em contextos sociais que punem pessoas por suas cisdissidências e por mudar de ideia sobre suas identidades de gênero.
Faces diferentes do cissexismo punem cada transgressão: há a transgressão por considerar que gêneros nem sempre são correspondentes aos impostos ao nascer; a transgressão por se ver como alguém de uma identidade de gênero diferente da imposta; a transgressão específica a cada identidade de gênero que a pessoa tem (seja minimizar a experiência de uma pessoa gênero-fluido por não ter uma identidade fixa, de uma pessoa xenogênero por não ter gênero baseado em alguma corporalidade, de uma pessoa transfeminina por seu corpo não se adequar a estereótipos cis, e assim por diante); a transgressão por “mudar de ideia”, por não ter uma ideia precisa e consistente desde o primeiro momento da vida; entre outras possibilidades. Nem todas essas transgressões são punidas com a mesma frequência e das mesmas formas, mas quero enfatizar que não é incomum ver pessoas caírem na lógica de que estão “traindo” uma comunidade ao passar a se ver como parte de outra, ou de que suas jornadas pessoais são universais e portanto toda pessoa deveria evitar se dizer de certas identidades pelas quais essas pessoas passaram.
O que quero pedir aqui é compaixão: tanto em relação aos próprios processos de descoberta quanto aos processos de descoberta alheios. Afinal, ninguém nasce sabendo, e, quando se trata de identidades cisdissidentes, muita gente passa a vida inteira sem ter noção de como elas funcionam também.
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